A boneca inflável de cada um
Lars mora na garagem da casa de seu irmão mais velho. Tem 27 anos, mas não gosta de sair, nem mesmo para tomar café coma família, apesar dos esforços quase acrobáticos de sua cunhada. Só sai para ir ao trabalho e à igreja. Mas um dia ele aparece na casa do irmão e avisa que vai trazer Bianca, sua namorada, para o jantar. Explica que, como ela é meio brasileira, meio dinamarquesa, não fala inglês. Bianca não caminha e precisa de uma cadeira de rodas, já que a sua foi roubada. Lars pergunta ainda se ela pode se hospedar na casa deles porque, como ambos são religiosos e solteiros, não acham certo ficar sob o mesmo teto. O irmão e a cunhada, que se preocupam com a solidão de Lars, ficam exultantes. Muito animados, arrumam o quarto de hóspedes e preparam o jantar. Em seguida, Lars aparece com a namorada. E eles descobrem que Bianca é uma boneca daquelas feitas sob encomenda para sexo.
Este é o enredo de um filme que pega a alma da gente pelo pescoço e bota ela no colo para um diálogo de delicadezas. Dirigido com sutileza pelo estreante Craig Gillespie e marcado por atuações excepcionais, foi quase ignorado pelo Oscar 2007 (apenas uma indicação para melhor roteiro original), passou meio batido pelos cinemas brasileiros aonde chegou com muito atraso no ano passado e agora pode ser encontrado em qualquer locadora. Acaba também de estrear na TV a cabo nos canais telecine. Como o título em português é muito, mas muito ruim (“A garota ideal”), a gente passa por ele nas locadoras ou na programação e pensa que é mais um daqueles filmes descartáveis meio abobados. Eu mesma passei por ele dezenas de vezes na prateleira da locadora sem uma segunda olhada. Só aluguei porque foi muito bem recomendado. Então assisti – e fiquei com vontade de ser rica para distribuí-lo pelas ruas como presente de utilidade pública. Como não sou, escrevo.
A grande história do filme é como a família, a médica e a comunidade da cidadezinha lidam com a suposta maluquice de Lars naquele inverno. Depois do jantar de apresentação, a cunhada sugere que Bianca possa estar estressada com tudo o que viveu nos últimos tempos. Deveriam levá-la a uma médica conhecida, que também é psicóloga, para um check-up. Depois de examinar Bianca com o estetoscópio e auscultar a situação com os olhos e os ouvidos, esta médica diz que não lhe parece que Lars tenha uma doença mental que o leve a uma internação. Do jeito dele, Lars leva a sua vida, trabalha e não machuca ninguém. Para ela, Bianca chegou por algum bom motivo. Lars criou Bianca para ajudá-lo a resolver um conflito. Quando o conflito for solucionado, Bianca poderá partir.
Neste caso, diz ela, o melhor a fazer é acolher Bianca. “Mas ela é uma fantasia”, diz o irmão. “Não”, diz a médica, “ela é real”. Está bem ali, na sala de espera do consultório. Para Lars ela é real – e este é o título traduzido do inglês (“Lars e a garota real”). “Mas vão rir dele”, retruca o irmão. A médica dá uma olhadinha e afirma: “E de vocês também”. Na manhã seguinte , o irmão não se contém e diz para Lars que Bianca “é só uma coisa de plástico”. Lars dá um sorrisinho, cochicha com Bianca e explica: “Bianca diz que Deus a criou assim para poder ajudar os outros”.
A partir deste momento, o filme conta como a cidade acolheu a Bianca de Lars. Ou melhor, como acolheu Lars. Embora a realidade dele parecesse bizarra para todos – e para cada um à sua maneira – não o julgaram. Apenas o acolheram. Esvaziaram-se de seus preconceitos para alcançá-lo, ainda que não pudessem entendê-lo. Não podiam entendê-lo nem ver o que ele via, mas podiam amá-lo. Em vez de destruí-lo porque não podiam entendê-lo, como acontece habitualmente, o amaram mais.
Se um Lars aparecesse perto de nós – e a verdade é que volta e meia aparece algum –, o mais provável seria enquadrá-lo no escaninho de alguma doença mental e dopá-lo. Antes da luta antimanicomial, os hospícios estavam cheios de gente parecida com Lars. Malucos, lunáticos, delirantes, loucos, fora da casinha. Gente que, mesmo não tendo nenhum traço de violência, nos perturba porque ouve vozes que não ouvimos, considera real o que para nós é fantasia, desafia nossa suposta normalidade. Gente que, com a sua diferença, nos perturba tanto que só conseguimos dar uma resposta violenta: a rejeição.
Dias atrás eu ouvia uma amiga contar sobre um primo que desde que perdera uma pessoa querida passara a se comunicar com ETs. Ele toca a sua vida, continua sendo um jovem doce, mas conversa com extraterrestres como se fossem velhos conhecidos. A família está perdida, sem saber o que fazer. Minha amiga está preocupada porque teme que ele perca os amigos, o emprego, a vida que construiu. Ao escutá-la, percebi que a angústia dela não se dava pelo fato de o primo conversar com ETs, ainda que não acredite que eles existam neste mundo. O problema é o que as pessoas ao redor farão com alguém que não faz mal para ninguém, mas jura conversar com alienígenas. O problema é a capacidade de destruição daqueles que acreditam em coisas aceitas como “normais” quando se descobrem diante de quem acredita em coisas consideradas “anormais”. Sejam elas uma boneca inflável ou um ET.
Talvez o primo da minha amiga converse com ETs pelo resto de sua vida, talvez um dia os ETs partam para outras galáxias onde existam outros garotos doces precisando ser escutados por criaturas verdes. Ou talvez o primo mande os ETs embora porque encontre alguém do próprio planeta para ocupar este lugar. O problema será, enquanto isso, sobreviver às pessoas que escondem seus ETs no armário.
É uma pena que precisemos tanto de julgamentos sobre o que é um comportamento normal ou não – sempre esquecendo que a “normalidade” muda conforme a cultura e o tempo histórico. Esquecendo também de olhar para a própria vida, com a honestidade necessária, para perceber que cada um de nós acredita em coisas muito estranhas e bizarras. Apenas que são coisas que mais gente também acredita. Este, aliás, é um exercício bem interessante, capaz de alargar os limites sempre estreitos de nossa tolerância.
É triste viver num mundo onde diante de qualquer diferença, mesmo que de opinião, seja preciso cair matando. Que gente tão insegura e pobre de espírito nos tornamos para temermos tanto aqueles diferentes de nós? Sempre que vejo alguém desqualificando um outro por suas ideias e suas crenças, fico pensando: será que esta pessoa tem uma vida tão sensacional que todas as outras precisam ser esculhambadas? Desconfio que seja exatamente o contrário. Não custa nada olhar para dentro e apalpar um pouco a matéria dos nossos dias antes de sair por aí cimentando regras para a vida de todos. Torço muito para que o primo da minha amiga não encontre gente que se sinta ameaçada pelos seus ETs. Mas sei que vai encontrar. E temo por ele.
Acho que, em alguma medida, temos todos nós ETs ou bonecas infláveis que nos ajudam na tarefa complicada que é viver. Especialmente quando esta tarefa fica muito difícil. Seria tão bom que conseguíssemos amar melhor e, mesmo ao ver os outros agarrados a ETs bem pequeninos, fôssemos capazes de deixar passar sem sacarmos nossas armas de extermínio. Quantas vezes não vemos gente bem próxima que está segura apenas por um fio à sua vida por causa de alguma tragédia ou mesmo de uma fragilidade maior diante das agruras do mundo. Em vez de escutar, aceitar e acolher, nosso comportamento habitual é sair logo cortando, com uma tesoura bem grande, o fio que aquela pessoa teceu com a maior dificuldade. E sem oferecer nada em troca para botar no lugar.
Estou bem cansada de gente que adora dizer, apoiada por sua metralhadora de certezas: “Fulano está perdido”. Ou “sicrano nunca conseguiu fazer nada decente na vida”. Ou, os que acham chique falar em inglês: “Beltrano é um loser”. Será que estes arautos do sucesso estão tão perdidos que pensam que se acharam na vida? Bem, talvez esta crença seja o único fio que os mantêm acima do abismo.
“Lars e a garota real” (ou “A garota ideal”), o filme, é uma fábula. Não por causa de Lars, mas por nossa causa. Naquela cidade as pessoas são muito melhores do que nós. De repente percebi, assistindo ao filme, que o mais estranho ali não era Lars e sua boneca, mas todos os outros. Porque, NESTA vida real, não há nada mais distante do normal, não há nada mais bizarro ou fora da casinha, do que gente que, em vez de julgar, catalogar e descartar aquele que é diferente, escuta, aceita e acolhe. Este – e não o de Lars – é o comportamento mais lunático do filme. Uma pena não para os Lars da vida, mas para todos nós.
(Eliane Brum para a Revista Época, em 02/08/2010)
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