domingo, 24 de abril de 2016

"A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalhas e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz." - Ferreira Gullar

"Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquela menina que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ela chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço. Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte. Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos. Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não quero que me convidem para eventos de um fim de semana com a proposta de abalar o milênio. Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos e regimentos internos. Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos. Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de 'confrontação', onde 'tiramos fatos a limpo'. Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral. Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: 'as pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa... Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja tão somente andar ao lado do que é justo. Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, desfrutar desse amor absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo. O essencial faz a vida valer a pena." - Rubem Alves

sexta-feira, 22 de abril de 2016

"Todo dia eu penso: podia sentir menos e menos e menos. Mas não adianta, tudo me atinge, abala, afeta, arrebata, maltrata, alegra, violenta de uma forma absurda e intensa. Nasci pra ser intensa e dramática. Nunca sei direito se a vida me fez assim, as situações fizeram com que eu me tornasse assim, não sei, não sei. A última e única coisa que lembro é de sentir. Eu sinto o sentir. Sei que parece papo de louco, mas é verdade, é real, sinto demais. A realidade me consome. Mas me consome e-xa-ge-ra-da-men-te. A vida maltrata quem sente demais. Quem sente demais acaba sofrendo mais que a maioria das pessoas. Tudo importa, tudo é exagerado, tudo é sentido de corpo e alma. Alma, principalmente." - Clarissa Corrêa

- sobre "Meninos de Abrigo"

Que nem toda Mulher queira ser Mãe é perfeitamente justificável e de todo compreensível. Eu quero ser o que eu quiser!, só e simplesmente define.
Que nem todo Homem compreenda, sequer aceite, que ser Pai é uma sua escolha, livre e consciente, ou mesmo que assuma tal risco com quando se esquiva em prevenir-se, é um ideal a ser perseguido nos rigores da lei ou nos versos de um poema.
Doutro norte, ser Filho não é uma escolha. 
Ser Filho é o que se é, sem muitas justificativas e maiores compreensões, não havendo aceites, tampouco quereres. Não escolhemos ser Filhos, muito menos fazemos fila e pegamos senha para a escolha dos nossos genitores. Somos o que somos e com isso temos que nos a ver.
Crianças e adolescentes podem ser Filhos de Mulheres que, por motivos seus (talvez nossos!), não escolheram ser Mães. Outras, ainda, que não souberam (ou não conseguiram?) prover-lhes cuidados, e, para além, dar-lhes afeto.
Crianças e adolescentes podem ser Filhos de Pais que, por motivos seus (seus!), não quiseram ser Pais. Homens que, por suas razões, recusaram a paternidade, oxalá por não terem-na suportado, ou quiçá conseguido serem Pais...
Há Filhos que contam com Mães, outros com Pais, poucos com ambos, contudo, Filhos que vivenciam situações que não permitem que essas Famílias [sobre]vivam de forma sadia e razoável, ou como quer os ditames da lei, ou como quer a mídia como quando vende a família no comercial de margarina, ou como quer a novela global das oito e suas Helenas, ou como querem os críticos pseudo-mantenedores do Bolsa-Família, ou...
É, assim, que, principalmente, a partir de um modelo frustrado de Mãe, Pai, Família, temos (todos!) os Filhos do Estado.
Esse Estado que acolhe, que, a seu modo, garante a subsistência, confere segurança, que proporciona acesso aos direitos de educação e saúde, é o mesmo que, a seu tempo, abre-lhe as portas e, sem muitas gentilezas, os coloca às ruas.
Crianças e adolescentes institucionalizados em abrigos educacionais por força de medida judicial de proteção, se não adotados ou se não retornarem à convivência familiar de origem ou mesmo à extensa, aos seus dezoito anos de idade, tem frio e cruelmente rompido o vínculo protetivo com a Família que o Estado, a seu modo e a seu tempo, fez as vias. O Estado é a Mãe que não soube ser Mãe; é o Pai que recusou a paternidade.
Chegada a maioridade civil "ganham", os Filhos, a liberdade de serem o que puderem, e, muitos, seguir como tais - Filhos do Estado - porém na condição de internos de abrigos públicos e albergues municipais, hospitais psiquiátricos, e, estabelecimentos prisionais.
Olhemos em nosso entorno!
Os Filhos do Estado estão aqui e acolá. Agora ou aos 18 de idade.
OS Filhos do Estado somos todos! Na medida de nossas limitações, na esquiva de nossa responsabilidade, na esteira de nossa imbecilidade.
L.C.

Reportagem de Joana Soarez e Natália Oliveira: 
"Meninos de Abrigo"