segunda-feira, 2 de maio de 2011

O Testamento - Rubem Alves


 
 
        Tempos atrás eu sugeri que se fizesse uma mudança na liturgia que marca a passagem dos anos da vida de uma pessoa, que não mais se apagassem as velinhas, como se a morte dos anos passados fosse uma coisa a ser celebrada, mas que se acendesse uma única vela, na esperança de um futuro semelhante ao da vela, de luz e tranquilidade.


       O tempo passou e chegou a hora de reacender a minha vela. Que pensamentos pensarei? Acho que vou meditar sobre o testamento. É uma idéia da qual não se pode fugir, quando se da conta de que a cera que resta é muito menos do que a cera que já se queimou.

       O testamento é o que restou, depois de feitas todas as somas e subtrações. É aquilo que se passa ãs mãos dos que continuarão a viver depois de nós, com um pedido: "Por favor, na minha ausência, não se esqueça de regar a minha planta..."

       Claro que não estou pensando nas coisas que fui ajuntando no passar dos anos. Elas nào tem a menor importancia. Não tem o poder de nos tornar nem mais sábios e nem mais felizes. Porque sabedoria e felicidade são coisas que crescem por dentro, enquanto as coisas ajuntadas ficam de fora. Pelo contrário: já vi vidas e amizades perturbadas e destruídas por causa de uma herança.

       Mas aí me descubro ansioso. Porque a distribuição de propriedades e objetos é coisa simples - basta que se escreva um testamento. Mas aquilo que eu realmente desejo dar para meus filhos não pode ser dado. É coisa que só pode ser semeada, na esperança de que venha a crescer.

       Acho que a minha situaçào se parece com a de Vinícius de Moraes. Também ele queria deixar um testamento. Não de coisas, como se fosse um ritual eucarístico, em que o que se dá aos outros são pedaços do próprio corpo, na esperança de que eles comerão e gostarão. No fundo, o que se deseja é a imortalidade: continuar vivos naqueles que comem o que lhes oferecemos como herança.

       Mas só existe um jeito de dar ao outro aquilo que é a carne da gente: falando. Vejam só que coisa mais pobre: uma herança cujas coisas deixadas são palavras.

       É o que desejo deixar aos meus filhos como herança: a imagem da vela que queima na solidão silenciosa, sem se deixar perturbar pela loucura barulhenta e apressada dos homens de ação e sucesso; sob a luz da vela, no gozo da tranquilidade solitária, acordar o poeta que dorme em nós. O que não é garantia de felicidade. Mas é garantiad e beleza e de serenidade. E que coisa mais pode alguém desejar receber como herança? 


Rubem Alves
Psique _ ano VI, n.63.

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