domingo, 13 de janeiro de 2013

duzentão


Pedro chegou em casa, atirou a mochila sobre o sofá e procurou o jantar guardado pela mãe na geladeira.
Foi um dia exaustivo. Às cinco da manhã já estava a ajudar o pai na obra. 
Após seis horas de cimento, sol escaldante, tijolos, marmita fria e cinquenta reais percebidos como servente de pedreiro, vestiu o uniforme amassado, tirou a argamassa do solado do tênis e foi a pé para a escola. 

Quando criança dividia-se entre soltar pipa e auxiliar a avó na fabricação de salgados. 
Ainda moleque saía com o balaio de pasteis e coxinhas pelas ruas da periferia da capital, retornando para casa somente com os guardanapos sujos de gordura. 
Na viela que dava acesso à rua, encontrava-se com os seus colegas de classe, estes igualmente jovens, mas já iniciados nas práticas da traficância. Cumprimentava-os, trocava uma ideias, e dirigia-se para casa, pois o pai o aguardava para auxiliar-lhe com o dever de casa.
Pedro decidiu cursar Engenharia Civil na federal mineira, e, para tanto, vinha juntando economias para custear um cursinho pré-vestibular de qualidade. 
Advindo da escola pública municipal, seu maior sonho era pendurar o diploma na parede da sala, ao lado da imagem do Consagrado Coração de Jesus.

Naquele dia, tomado pelo cansaço, Pedro decidiu não rever a questão de Física mal compreendida durante a aula. 
Iria até a casa da avó, localizada nos fundos do terreno, para tomar-lhe a benção, e por lá se abrigaria. Apesar do porte físico conferido pelo carregamento das latas de cimento e pelos seus dezessete anos de vida, tinha medo de dormir sozinho em casa. 
Não encontrando a avó acordada, jogou o colchonete no chão, retirou o travesseiro e os lençois do velho armário, e preparou-se para, enfim, dar por encerrado aquele dia. 

O silêncio cortava a madrugada quando Pedro ouviu o rangir da porta. 
Arregalou os olhos.
No escuro do quarto, sentiu uma mão subir-lhe as pernas. 
Interrompeu a respiração.
Entre gritar por socorro e mijar-se de medo, permaneceu calado e imóvel.
E, então, alguém, atrás de si, pediu-lhe silêncio.

Mesmo anestesiado pelo medo, Pedro identificou a voz como sendo a da prima, Raíssa.
Sem entender muito bem o porquê, lembranças dos puxões de cabelo, das bolas de futebol furadas e dos selinhos trocados no pêra-uva-maçã-salada mista, vieram à tona. 
Seguidas foram das recentes advertências do pai de afastar-se dela, após o seu comportamento mal falado pelos vizinhos, das idas quase diárias ao baile funk, do uso de loló e os suspeitos vidros embaçados dos carros parados na rua de cima da casa. 
Mal sabia o coroa que fazia tempo que ela sugeria-lhe muito além de selinhos de frutas... 

Enquanto recordava, a mão vasculhava o conteúdo do short. 
Um misto de desejo e desespero o abateu. Era homem, ela, mulher, e encontravam-se sozinhos, com a luz do corredor a invadir o vão da porta. 
Sim, há muito ela o atentava e ele resistia bravamente, não correspondendo às suas investidas, apesar dos chamamentos de frouxo e vacilão.
Tomado pelo desejo, permitiu aquela mão chegar ao seu sexo. 
Ela sussurrou-lhe, então, para que se virasse e encontrasse o verso do corpo. Estaria a presenteá-lo com a bunda.

O gozo veio rápido.
Desajeitado, vestiu o short e pediu para que dele se afastasse. Raíssa recusou-se, e, com a luz que adentrava no ambiente, pode perceber que ela encontrava-se totalmente nua. 
Rapidamente tomou o colchonete e o travesseiro debaixo dos braços, e dirigiu-se para a sala, onde estava um outro seu primo dormindo no sofá com a tv ligada.
"Foi só um anal, foi só um anal..."-, repetia, tentando convencer-se.
Não conseguiu dormir o restante daquela noite.

Pedro não revelava o seu segredo: tratava-se de um duzentão*.
Envergonhado, negava todo o ocorrido.
"Foi ela quem me provocou, Advogada, eu estava quieto no meu canto! Ela é uma puta, todo mundo sabe!"-, exclamava num tom abaixo, para não ser ouvido pelos demais, com medo das represálias.
Todo e qualquer esclarecimento feito seria em vão. Pedro sentia-se e dizia-se injustiçado.  
"Ela estragou a minha vida! Eu estava no caminho certo, ia fazer faculdade! Agora estou aqui, misturado com esse monte de vagabundo! Então eu sou um bandido?!"-, e chorava, ressentido.

Apesar da revolta, Pedro comportava-se bem, sendo admirado pela educação com que tratava a todos e pela dedicação para com os estudos. 
Destacava-se, também, como artilheiro do time de futebol da Unidade e pela torcida inflamada pelo Atlético Mineiro em dias de clássico.
Quando questionado pelos outros adolescentes, conforme acordado, dizia ter "rodado no tráfico" e dava por encerrado. O ato passou a ser um assunto velado tanto na Unidade quanto na sua família.

O tio, pai da Raíssa, ao saber do ocorrido, quis matá-lo. Não aceitava o fato da sua "princesinha" ter sido violentada. Foi ele o denunciante à polícia, cuja qual o abordou com violência e na frente de todos os alunos, um dia após o ocorrido.
O pai, apesar de sentir-se humilhado, estivera a todo momento a seu lado. 
Uma vez condenado, cessou as visitas. Não sujeitaria-se às revistas, e não teria condições de "ver o seu menino atrás das grades", dizia.

O trabalho com Pedro foi desafiador. Era imperioso que o adolescente compreendesse que todo o ocorrido naquela noite tratou-se de um crime (no seu caso, de um ato infracional).
"Isso não está certo, não, Advogada! Eu preciso falar com o Juiz, ele vai ter que entender meu lado!". 
A condenação de Pedro viria a ser apreciada em grau de recurso de Apelação. 
Igualmente desafiador para a Psicóloga que o atendia. Esta, quando veio a saber dos motivos reais que levaram o adolescente ao cumprimento da medida, não soube (ou não conseguiu) dissociar a Psicóloga mulher e a Psicóloga mãe de uma menina de quatro anos da Psicóloga profissional, integrante de uma equipe técnica da socioeducação. Ademais, Pedro recusava-se a falar com qualquer outra pessoa sobre o ato. 

Desafios à parte, restaria dar início ao processo de execução da medida.
A Psicóloga deveria despir-se, ao máximo, dos seus (pre)conceitos e juízos de valor, e executar o seu trabalho. O adolescente, por sua vez, buscaria compreender, tanto quanto possível, a gravidade do ato praticado e por ele responsabilizar-se, cumprindo a medida socioeducativa imposta. 
O trabalho seria conjunto e cada um poderia contar com o outro como parceiro.
Touché!

Pedro não concluiu o Ensino Médio, sendo reprovado por infrequência. 
"A escola é muito longe da Unidade, dá preguiça!"-, justificava.

Pedro iniciou o uso de entorpecentes.
"Para relaxar os pensamentos..."-, e gargalhava.

Pedro fez uso das suas economias para adquirir uma moto. Não mais queria a faculdade de Engenharia Civil. 
"Meu coroa não vai se orgulhar de mim nem com o título de Presidente do Brasil! Ah, o Lula não tem diploma e foi Presidente, eu posso ser também!"-, ironizava.

Pedro não foi ao enterro da avó. 
"Exploradora de trabalho infantil, aquela velha!"-, sentenciava.

Pedro afastou-se da família. 
"Se eu ver aquela uma, aí, sim, vão poder me chamar de duzentão!"-, referia-se a prima.

Pedro criticava a sociedade. 
"Os bandidos de verdade estão por aí e a polícia não faz nada! Aliás, ninguém, NINGUÉM faz nada"-, revoltava-se.

Pedro recusava conversar. Estava cansado de ouvir e não darem-lhe ouvidos. Ora, o Juiz não "entendeu o seu lado"; a Apelação foi improvida.
"Leva a mal, não, Advogada, mas que justiça é essa que vocês fazem?"-, indignava-se.

Pedro não sabe, mas é em busca dessa resposta que eu saio de casa todas as manhãs.

L.C.
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Os nomes dos personagens foram trocados para manter a salvo suas identidades.
Duzentão* é a denominação popular dada ao autor dos Crimes contra a Liberdade Sexual, em menção a tipificação do Código Penal pátrio (artigo 213 e seguintes).

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