Ruan* era introspecto.
E sorrateiro.
E observador.
E desconfiado.
E temperamental.
E arredio.
Quando falava era evidente o preciosismo no emprego de cada palavra.
(Sobre o silêncio do Ruan: minimamente constrangia o interlocutor).
Não foi bem recomendado por qualquer pessoa do Sistema.
Todos, se não o temiam, o odiavam ou dele mantinham distância.
Até mesmo os demais adolescentes o evitavam e sobre o Ruan elaboravam histórias míticas, que, de tão fantasiosas, beiravam a realidade.
Comigo as recomendações não foram diferentes. Cuidado era a palavra de ordem tanto da direção quanto recomendação da equipe de segurança.
(Sobre o comportamento do Ruan: indiferente a tudo e a todos).
Conheci Ruan no pátio de recreação.
Enquanto todos os demais adolescentes jogavam futebol, este permanecia escorando o muro, à luz do sol, sem camisa, mãos para trás e de cabeça baixa.
Sozinho, pensativo e silente.
Dele me aproximei, esticando a mão direita, assim como ajo com todos os outros.
- Muito prazer! Meu nome é Lívia e sou Advogada na Unidade. Você deve ser o Ruan.
A minha mão permaneceu à espera do cumprimento.
- Oi.
Somente os olhos se moveram.
(Sobre o olhar do Ruan: enigmático e desafiador).
Confesso ter estudado toda a sua situação jurídica pregressa antes de abordá-lo.
A trajetória infracional teve início aos doze anos de idade, sendo permeada por, analogamente, furtos, roubos, usos de entorpecentes, tráfico e violência doméstica, vindo a recidir nesta última em duas ocasiões.
Ruan foi condenado em todas as medidas em meio aberto e não cumpriu nenhuma delas!
Da Semiliberdade havia evadido... em todas as oportunidades de atividades externas!
A propósito, nos conhecemos após apreensão policial da última de suas incontáveis evasões e/ou fugas.
(Sobre as evasões do Ruan: habilidoso, escalava sem dificuldade os quatro metros do muro e não importava-se em ter o corpo retalhado pela concertina).
Para além da sua extensa trajetória infracional, Ruan não possuía vínculos familiares.
A mãe era falecida e o pai residia no interior do estado, em local incerto.
Os irmãos menores estavam sob a responsabilidade do Estado, em abrigos institucionais, residência do Ruan até o primeiro registro de fuga.
Passou, desse modo, a se estabelecer nas ruas da capital mineira.
(Sobre a rua para Ruan: sensação de liberdade).
Com a única tia, mal se relacionava. Esta não nutria boas lembranças do curto período em que o adolescente esteve aos seus cuidados.
Permanecia nas ruas durante o dia, e, à noite, chegavam ao seu conhecimento as notícias de que o sobrinho vinha praticando pequenos furtos nos comércios do bairro, em companhias "suspeitas". Numa das vezes em que foi chamar-lhe a atenção, este a agrediu. No dia seguinte, entregou-o ao Conselho Tutelar.
(Sobre o referido episódio, Ruan sentenciou: "li-ber-da-de", dito assim, pausadamente).
Ruan foi precoce na criminalidade, precoce nas ruas e precoce no amor.
De pele mulata, preocupava-se em alinhar o cabelo após a realização de uma centena de abdominais.
Sua discrição era sua maior característica, sugerindo mistérios a serem revelados.
Ruan foi revelado por uma senhora alguns anos mais velha. Com ela co-habitou por longo tempo permeado por discussões acaloradas por ciúme, traições e pela agressividade após o uso diário de entorpecentes.
(Sobre o vício do Ruan: reconhecia-se usuário da Maconha e da Cocaína. "Pedra é coisa de noiado doente!", como referia-se ao viciado em crack).
A tal senhora sustentava-o, contudo, Ruan não se afastava da atividade criminosa.
Dizia que sentia prazer quando abordava a vítima e nela via o olhar aterrorizado.
Ademais, Ruan era adepto da Magia Negra, participando do sacrifício de galinhas e bodes, e bebericava o sangue dos animais ao final das cerimônias. Tal prática interferia no seu trato com o cachorro da então mulher.
Suas guias no pescoço não podiam ser tocadas, tampouco retiradas quando faziam sexo. Este, para o Ruan, era assunto que, tal qual os roubos que praticava, davam-no um prazer atípico.
Por menor que fosse a oportunidade, Ruan a aproveitava e, assim, insinuava-se, sutil, porém, incisivamente. Com o decorrer do tempo as traições deixaram de ser sigilo no bairro. E, com esse mesmo tempo a jovem senhora cansou-se de tal situação, e, numa das brigas mais agressivas, teve o braço e uma das vértebras quebradas. Era o fim.
(Sobre o término do relacionamento, Ruan disse: "ela não podia ser minha mãe e eu não a queria como mulher. Jogar na cara o que fazia por mim foi seu maior erro.").
Ruan passou a pernoitar em hotéis baratos da área de maior criminalidade do centro da cidade.
Liderou uma quadrilha especializada no roubo de mansões. Numa de suas investidas, com a Hilux tomada por televisores, joias, dólares e quadros de arte, foi surpreendido em flagrância e conduzido para o acautelamento provisório.
Quando sentenciado à Semiliberdade, o MM. Juiz de Direito não atentou para o fato do Ruan não possuir responsável que garantisse-lhe o direito legal à convivência familiar. Não havia mãe, pai, irmão, tio, e, agora, companheira que pudessem viabilizar sua saída aos finais de semana. Dessa forma, sem saída, Ruan evadia na primeira oportunidade.
(Sobre a Semiliberdade para Ruan: "podem prender meu corpo, minha consciência estará sempre livre!". E que ninguém ousasse duvidar!).
Quando condenado à Internação - a medida mais gravosa - passou a receber a visita da solidária jovem senhora que, além de levar biscoitos e chocolates, levava o resto do seu amor. Aproveitando-se disso, Ruan prometeu o afastamento da "vida loka", assim como jurou-lhe fidelidade.
Após cumprido pouco mais de um ano da medida, Ruan retornou para a Semiliberdade, e, ante as saídas para a realização de atividades externas, não honrou sua promessa, voltando a infracionar e a trair a mulher. E assim seguia o ciclo vicioso da sua vida.
(Sobre a adolescência do Ruan: estava há poucos dias de completar a maioridade).
Na oportunidade em que nos conhecemos, era essa, aliás, a única demanda que Ruan apresentava.
Quando esclarecido o fato de que poderia vir a cumprir a medida até os vinte e um anos de idade, reagiu mal, muito mal, chutando a cadeira e batendo a porta da sala.
Foi contido violentamente pelos agentes, pois acreditavam que este havia me agredido.
Foi por pouco, bem pouco...
(Sobre o referido episódio com Ruan: senti medo, devo admitir).
Ver Ruan contido sugeria a cena de um animal feroz imobilizado: babava, debatia-se, olhos vidrados, veias do pescoço a pulsarem fortemente.
Os demais adolescentes (não) reagiam temendo serem suas próximas vítimas. Não à toa já conferiam-lhe tratamento especializado, naquele momento, não podiam agir de modo diferente: afastaram-se e mantiveram-se silentes e imóveis.
Foi preciso levá-lo à direção para ser acalmado. Após longo período de conversa, tranquilizou-se e pediu para que me chamassem.
- Desculpa, Lívia.
Incrédulos, todos - eu disse todos! - me olharam.
Sem melhores alternativas, respondi:
- Está desculpado, Ruan.
(Sobre a Lívia para o Ruan: tratava-me pelo nome, e não como a maioria dos adolescentes, os quais me chamavam de "Advogada").
Era uma segunda-feira, final do expediente, um agente da segurança me convocou:
- O Ruan quer falar com você.
À minha espera na sala de atendimento, Ruan levantou-se.
- Pois não, Ruan.
- Lívia, obrigada.
E, de repente, eu vi uma mão suspender-se no ar, a esperar-me.
Sem melhores alternativas, reagi:
- Boa sorte, Ruan.
(Sobre o Ruan para a Lívia: devolvi o seu cumprimento apenas com o olhar, como aprendido no primeiro encontro).
L.C.
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Em tempo: segundo informações não-oficiais, Ruan atualmente encontra-se em cumprimento de pena privativa de liberdade no presídio de segurança máxima, após o cometimento de tráfico de entorpecentes.
O nome do jovem foi alterado para manter-lhe a privacidade a salvo.
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