sábado, 19 de janeiro de 2013

de abobalhado e louco cada um tem um pouco


O sistema público de saúde não conseguiu fechar o diagnóstico. Para qualquer leigo era inegável, porquanto, visível, tratar-se de um louco, um abobalhado.


Quando criança, juntamente com as irmãs eram enterrados vivos no buraco cavado pela mãe no chão de terra da cozinha, a fim de esconder as crianças dos seus clientes. Não para poupar-lhes dos gemidos e gozos, mas sim para não incomodarem a realização dos inexatos 6, 7 programas da noite.

O pai, cliente desconhecido, não saberá que o filho sempre apresentou comportamento diferenciado dos seus iguais. Tanto no jeito de falar, manso e abobalhado, do olhar de piscadas lentas e abobalhadas, como nos trejeitos comedidos e abobalhados até as passadas longas e abobalhadas

Alvo de chacotas na escola, dispersava facilmente a atenção nas aulas e não tinha paciência alguma para permanecer comportado por longos períodos. Arrumava logo um jeito de sair, nem que fosse na base dos gritos e portas esmurradas, e, transtornado, proferia ameaças de morte contra quem o impedisse de cruzar os portões da saída.

Descobriu na Maconha finalidade terapêutica. Com ela sentia-se calmo e tranquilo, e não atentava para as provocações alheias, tampouco para a mãe alcoolizada e dos muitos homens que frequentavam sua casa. E, também, não ouvia os sussurros de prazer e o choro de fome das irmãs.
Iniciado no vício, descobre em pequenos furtos meio para mantê-lo, assim como para comprar "bolo de padaria, macarrão e iogurte".

A mãe elege como marido um dos seus melhores clientes, e a vida em família passa a ser insuportável, com surras frequentes e constantes visitas da polícia na casa. Passa a morar com a avó e depara-se com uma família não muito diferente: presenciava diariamente os tios agredirem a já debilitada senhora quando esta negava dinheiro para a compra de mais uma pedra de crack. É sob esse cenário que decide viver sozinho, ser independente aos 11 anos de idade.

Acolhido pelo tráfico, descobre-se dependente de um back*, e, ter o vício garantido em troca da realização de serviços como aviãozinho*.
Em pouco tempo é apreendido pela polícia, e recebe uma surra "para não dar mais trabalho" àquela, deixando-o ainda mais abobalhado com a "violência dos homi". Passa a andar armado, buscando no velho cal.38 a segurança necessária para suas investidas ilegais.
Nova apreensão, é alvo de brincadeiras abobalhadas na "cadeia para menores". 
Encaminhado para abrigos, novas são as humilhações pelo seu estado abobalhado de ser.
Em liberdade, retoma o vício e as atividades, e, com poucos dias, retorna à "prisão".
Fica ainda mais abobalhado quando o Juiz diz que ele precisava de "tratamento de cabeça" e determina o cumprimento de uma "pena" em outra cidade, com gente que "fala e pensa muito rápido".
Belo Horizonte o acolhe, e são iniciados os trabalhos.

Com o tratamento mental em dia, passa a organizar-se no tempo e no espaço, e aprende como é conviver em sociedade. É, agora, um louco que consegue se comunicar, educado e cativante, e não mais um "louco abobalhado". Passa a ser respeitado pelos demais adolescentes, "visto como gente".

Na escola, após ajustamento de conduta, é permitido ausentar-se da aula antes do término, respeitando-se, assim, os seus "limites", desde que não importunasse os demais alunos, não desrespeitasse a professora e comprometesse a dividir suas dificuldades em momento oportuno. Sua única falta seria esquecer o caderno no ponto de ônibus todas as semanas.

Cessa com as atividades ilegais quando se convence que, como ajudante de padaria, seria "mais feliz" já que poderia comer "bolo de padaria de graça" e, nesse assar de bolos, enfim teria uma profissão. Conclui o curso com nota 7 de aproveitamento.

No entanto, não havia família que o acolhesse nos dias de visita. A mãe, então usuária de crack, passou a residir nas ruas. A avó faleceu de causas desconhecidas. O padrasto recusava-se a recebê-lo, afinal, sobre ele não tinha qualquer "obrigação de responsabilidade". As irmãs estavam recolhidas em um abrigo. Um tio fora morto pelo tráfico e, o outro, evangélico, com "família simples e honesta", negava aproximação. 

Descobre-se outro tio, este residente na capital e dono de uma oficina de materiais recicláveis. Considerando a pouca convivênvia com o sobrinho, aceita-o apenas em visitas esporádicas, vindo a cessá-las com a justificativa de que o adolescente "fazia uso da erva, na laje, a qualquer hora do dia", despertando a atenção da vizinhança e comprometendo o seu negócio. Por esse motivo, não queria "chateação para o seu lado".

É essa a atual situação do abobalhado: os eixos da medida socioeducativa estão cumpridos, contudo, não há família para acolhê-lo.

É o texto da lei a ignorar os fatos reais da vida. 
É (mais) essa situação que o Estado - abobalhado- não previa.

L.C.
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Back é a denominação popular para o cigarro de Maconha.
Aviãozinho é a denominação dada ao iniciante no tráfico de entorpecentes, responsável pela transporte das substâncias para os pontos de vendas.

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