sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
encontros e despedidas [e vice-versa]
Era o primogênito de uma prole de três.
Os irmãos eram as principais vítimas de suas práticas nada inocentes.
Gêmeos, bonitos e mimados, sempre perdia quando a mãe intervinha.
Não conformava-se em ser tratado como o "acidente da adolescência".
Não conformava-se em ter que dividir atenções.
Não conformava-se em não possuir família paterna abonada.
Revoltava-se.
Quando criança, torcia pelo vilão nos desenhos animados.
Brincava de polícia e bandido com muita categoria.
Roubava bandeira como nenhum outro menino da rua.
Era aquele que, consciente ou não, havia decidido pela bandidagem.
Forma-se na profissão com as idas ao funk, o fumo de um baseado, as garrafas do melhor scotch vazias e as novinhas oferecendo-se até o chão, chão, chão, chan chan chão.
E do ingresso no tráfico de drogas da região.
Não era bonito. Cultivava um bigode fino sob os lábios tal qual Dick Vigarista.
Era magro, beirando o raquitismo, e andava meio corcunda, com os olhos sempre voltados para a alternância das suas passadas.
Vestia-se discreto para não chamar atenção, afinal, a combinação short florido + chinelo Kenner + boné aba reta era "freio de viatura".
Debochado e questionador, daquelas pessoas que você amaria ou não já na apresentação.
Entendedor dos negócios a que se propunha, gabava-se de traficar grandes cargas, e de custear sua liberdade junto a polícia com os mais altos arregos.
Desviava o assunto quando perguntado sobre a prática de homicídios; apenas sugeria que tais, em muitas situações, garantiram-lhe a "sobrevivência no mundo do crime".
Conheço Guilherme* após ser cumprido mais um Mandado de Busca e Apreensão.
Durante o banho de sol, interpela-me questionando sobre a sua prometida liberdade.
Não conhecia o seu caso, e foi esse o primeiro argumento que me ocorreu na ocasião.
"- Seja breve, Advogada, eu não duro muito tempo aqui não!".
Até então eu desconhecia a sua fama de fujão.
Quando passo a conhecer a sua história, constato que Guilherme passou mais anos da sua vida em contato com a lei do que descobrindo a sua existência.
Não raro comentava ter descoberto o humano das mais variadas formas:
nas surras de vara de marmelo da mãe,
nas sessões de tortura promovidas pela polícia,
quando obrigado a "furar de bala" as mãos dos noiados que deviam ao tráfico, como prova de masculinidade e profissionalismo,
nas madrugadas em que o "acerto do plantão não batia" e que "descia para o asfalto para fazer uma fita em trabalhador honesto que voltava para casa".
Não demonstrava arrependimento, dizendo que tudo o que havia feito até então fora um "mal necessário" para a ocupação da sua atual posição: gerência da boca de fumo.
Tampouco jurava inocência, e muito pelo contrário, vangloriava-se dos seus feitos; considero muitos deles frutos da sua fantasia. Ou não?
Da escola, encontrava-se há anos evadido, desde quando passou de aluno mediano para "bom comerciante local".
Acumulava a prática de vários dispositivos do Código Penal por analogia, até vir a receber a sanção mais gravosa, em 2008. Cumpriu considerável período de Internação quando, em 2011 (!), foi localizada causa de nulidade na sua sentença condenatória. Guilherme seria colocado em liberdade naquele processo caso não estivesse foragido do cumprimento da Semiliberdade, por processo anterior.
Esclarecer (e reconhecer) a lentidão e a falha do Poder Judiciário, bem como todas as especificidades do seu caso, foram desafiadores para a profissional do Sistema! Ao revés, para o profissional do sistema foi de fácil compreensão, apesar de nos seus olhos ver somada mais uma revolta.
Guilherme sabia usar a inteligência a seu favor.
Conhecedor de ambos os (S)sistemas, era gentil, educado e sabia como/quem cativar para obter pequenas vantagens, tais como uma sobremesa adicional e o aumento do volume do funk.
Guilherme era facilmente conquistado. Em contato com ele passei a conhecer o organograma das posições dos "empregados da firma", os balancetes dos "plantões" e como se relacionavam com as "paquitas" (policiais).
"- Vamos desembolar uma questão, aí, ô Advogada?!", era a forma como me convidava. Por esse motivo, os desafetos do Guilherme se juntaram aos meus, e o Sistema passou a questionar a pessoalidade da nossa relação. Mal sabiam que, certo dia, quando um adolescente novato teceu comentário sobre a minha maquiagem, Guilherme decidiu "a parada" do seu jeito: novo ato infracional pela prática, in tese, de lesão comporal. No seu entendimento, eu havia sido desrespeitada.
Em momento algum este faltou-me com respeito, assim como a qualquer outra mulher da instituição. Não falava palavrões, encerrava assuntos erotizados quando dos demais se aproximavam, e jamais apresentava-se sem camisa.
"- Respeito é pra quem tem!", dizia. Dávamos ao respeito mutuamente: Guilherme foi tratado como mais um adolescente em cumprimento de medida.
Alternando entre fugas e retornos, ora por cumprimento de mandado, ora por inacreditáveis apresentações espontâneas ao Judiciário, Guilherme podia não compreender, sobretudo, reconhecer, mas finalmente apresentava-se confuso sobre a que rumo dar à vida.
Na qualidade de foragido, esteve na porta da Unidade e pediu para chamarem a mim assim como a Psicóloga.
Quando o encontrei, apresentava-se bem trajado e com aspecto saudável.
Perguntava-me sobre os demais adolescentes, e dizia que estava gerenciando uma boca de faturamento satisfatório. Enquanto conversávamos, vez atendia ao celular, gerenciando à distância a tal boca, ora preparava um cigarro de maconha. Incomodada, eu o convidei a entrar, e, em vão, pus-me a tecer considerações sobre o seu caso, na expectativa de que Guilherme retornasse para a medida. Ouvindo-me com atenção, e, antes de acender o cigarro, agradeceu-me e despediu-se, afirmando que veríamos dentro em breve.
"- Não sendo na sessão de nota de falecimentos do jornal...", exclamei.
Replicou: "- Não, não, na sessão policia! E quero você como minha Advogada!", acreditava assim elogiar-me.
Guilherme veio a ser novamente apreendido em poucos meses.
Dessa vez, deparei-me com ele maltrapilho, ainda mais magro, com os olhos sem brilho. E sem a sua marca registrada: o bigode fino, de ladrão boêmio dos anos vinte. Era visível o seu retorno para o vício em cocaína.
Com um relato confuso, porém conhecedor dos seus direitos, pedia para acionarmos a genitora. Em contato telefônico com a mesma, era possível escutar suas queixas com o aparelho a considerável distância do ouvinte.
A mãe afirmava que o "Guilherme" (e, não, o filho) havia "limpado" a sua casa, e vendido todos os seus pertences, enquanto ela encontrava-se trabalhando "honestamente". Que não era a primeira vez que isso acontecia, e que sempre conferiu votos de confiança ao Guilherme, porém, estava cansada de submeter-se ao contrangimento das revistas íntimas quando era apreendido pela polícia. Para além, dizia que o mesmo estava jurado de morte no seu bairro, e não mais o queria próximo de si e dos seus outros filhos, para não servir como "má influência". Por fim, dizia que não o considerava como seu filho, e que o Juiz - ou qualquer um de nós- o levasse para casa, para ver o quão bonzinho ele era.
Não ousei contra-argumentá-la; em aproximados quatro anos de Sistema, aprendi que, com Mãe, não se discute.
Guilherme ouviu, silente e cabisbaixo, todo o teor do que fora conversado com a genitora.
Rememorou-me uma das lições que havia passado, em certa ocasião: bandido que é bandido não rouba no bairro em que reside, tampoucol,a sua própria Mãe, sob pena de ter a vida "roubada pelos irmãos".
Guilherme mostrou-se mais vivo do que nunca quando, num domingo de setembro último, subiu os muros da Unidade e, mesmo com o corpo todo retalhado pela concertina, empreendeu fuga com o chinelo Havaianas nas mãos.
É Janeiro e cai uma chuva fina em Minas.
Há pouco mais três anos eu não sabia o que eram férias.
Acordo, sobressaltada, por uma chamada no celular:
"- Alô!", digo entredentes e com os olhos ainda cerrados em sono.
"- Lívia, bom dia! Desculpa te ligar a essa hora, mas você não vai adivinhar quem voltou!".
L.C.
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O nome do personagem foi trocado para manter sua identidade a salvo.
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